UM POUCO DESSE POVO MARAVILHOSO


Pelos igarapés, ilhas, baías e manguezais do litoral, as matas do interior ou as ruas de pedra e os casarões do século 17 da capital São Luís, o Maranhão é o lar de uma gente submersa na espiritualidade, que aceitou o mistério como destino, vivendo de muitas maneiras sob a influência dos "encantados" - entidades mitológicas que aparecem em sonho ou são recebidas, em transes rituais, nos terreiros onde se praticam cultos religiosos próprios, de berço africano, como o tambor-de-mina e o terecô. Muitos deles derivam de personagens históricos reais, caso do português dom Sebastião, desaparecido durante a batalha de Alcácer-Quibir, em agosto de 1578, no Marrocos. Para os maranhenses, o rei português nunca morreu. Simplesmente se refugiou no quintal de suas casas - e, encantado, ressurge vez por outra para reafirmar a força mística do sebastianismo.
Sobre esses seres que transitam livremente entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o povo maranhense sedimentou parte importante de sua cultura (o folclore do bumba meu boi, nascido no período colonial, pode homenagear um encantado), em uma espécie de manifesto libertário contra a opressão da vida em uma das regiões mais pobres do Brasil. "Os encantados fazem parte da identidade do Maranhão", completa Lima-Pereira, "porque ali sempre houve, e ainda há, espaço para o místico, o divino."
Os encantados lembram a importância da natureza, das estações, do tempo dos homens e do tempo dos deuses. E, nos Lençóis Maranhenses, essas dimensões parecem estar em comunhão.
Eu termino a minha viagem em um trecho ermo do parque nacional, uma paragem conhecida pelo nome de Espigão, onde o rio Grande atravessa baixios de dunas antigas, beirando pomares de cajueiros repletos de flores perfumadas. Nesse refúgio, uma família abrigou-se tempos atrás em duas humildes casas cobertas com a palha do buriti. Não há luz elétrica nem sinal de telefone celular ou qualquer ícone que nos remeta à civilização. Todos ali praticam o ofício de macerar a mandioca e torrá-la até virar farinha, o alimento primordial. Não parecem muito simpáticos a visitas de forasteiros, e labutam, umas dez pessoas ao todo, em silêncio de catedral. Só abdicam da rotina austera para comer, descansar, pescar ou navegar pelo rio até a cidade mais próxima, Santo Amaro, onde costumam vender seu produto.
Há algo de sagrado no ar - uma emoção quase tangível. A existência recupera o sentido da simplicidade, do suor e do trabalho que se tornam pão. Este é um deserto pródigo em milagres, e as areias que se transformam em água e peixes são apenas um entre muitos deles.

Comentários