Raízes do Preconceito


É a partir da infância, que sentimentos de aversão ao outro são introjetados na psique. Esses primeiros afetos vão definir a personalidade, o mundo de sensações e relações do indivíduo em seu desenvolvimento.

Na minha época de aluno do curso primário, lembro-me bem de um dos alertas que as mães, pais e professoras davam regularmente: “tenham cuidado, não brinquem com os moleques de rua!” ― os marginalizados, como hoje são definidos. Tempo em que os mestres e tutores repeliam com rigidez tudo que pudesse colocar em risco a integridade psíquica dos educandos. A escola funcionava como um filtro de depuração da “impureza” e maldade presumivelmente existentes nos encarcerados, desempregados e deseducados (sempre os lá de fora). Era na hora do recreio da escola que nos soltávamos e dizíamos rindo aos borbotões: “se a professora soubesse do que estamos aqui a tratar e falar, nos expulsava”.

Fomos educados (treinados) e amansados por um sistema rigoroso, uma moenda que recalcava os desejos e afetos considerados tabus. Só restava um caminho para sobreviver sem muito atropelo: nos identificarmos com a postura de nossos mestres pais e tutores.

Não percebemos que padrões construídos na infância, e que hoje mal nos lembramos, deixaram suas ressonâncias na idade adulta. Sutilmente, essas sementes plantadas na tenra idade criaram raízes. Hoje, nem notamos, mas a seiva absorvida através das raízes continua correndo em nossas veias, agindo em nós, e em nossa vida de relação. Tal qual o nosso sistema imunológico, sentimos a febre, mas nem percebemos que este sintoma é produzido por anticorpos que na tenra idade se formam para reagir contra “corpos estranhos” que invadem ou ameaçam o nosso organismo.

Como crianças, assimilamos o padrão comportamental de nossos ancestrais, que com um pudor exagerado e recalques em relação à sexualidade, detinham um suposto “poder” e uma suposta “verdade”. E assim, fomos apreendendo comportamentos defensivos contra nossos próprios desejos. Desejos esses, que os nossos mestres, pais, pastores e padres consideravam indecentes, perversos ou coisa do diabo. Aprendemos que expor certos sentimentos era extremamente perigoso. Para sobreviver, fomos, aos poucos, aprendendo recalcar ou negar afetos ―, emoções puras e fisiológicas da idade.

Padrões de comportamentos foram forjados na infância a partir de sentimentos reprimidos. Desejos foram sepultados dentro de nós, pois, se viessem à tona perante nossos superiores, nos causariam extrema decepção.

Como raízes solidamente fincadas sob camadas de argila, assim era o nosso indevassável baú de segredos nos primeiros anos de escola. Quando uma ponta de anseios considerados “maus” emergia, nos sentíamos constrangidos ou demasiadamente envergonhados.

Para esconder ou recalcar os desejos, considerados ilícitos, criamos máscaras. O grande perigo residia em nos confundirmos demais com essas máscaras que, com o passar do tempo, podiam colar-se aos nossos rostos, dando a impressão de ser a continuidade da nossa própria pele.

Quem não se lembra dos termos, imbecil, idiota e burro, frequentemente brandidos por nossos educadores? Hoje, adultos, apesar de entendermos a razão dessas pulsões ou impulsos, percebemos ainda bater à nossa porta, os efeitos dos afetos repudiados lá no início de nossa formação.

Como tudo se cria a partir do que já se tem, fundamos uma nova versão de quem já fomos. Um dos efeitos colaterais decorrentes dessa operação é fatalmente o fenômeno da projeção: o mascarado é sempre o outro; o intolerante ou preconceituoso é sempre o outro.

O poeta e escritor americano, Robert Bly, diz algo emblemático sobre esse melindroso tema: 

“...os aspectos sombrios é como um saco invisível que carregamos nas costas. À medida que crescemos, colocamos no saco todos os aspectos de nós mesmos que não são aceitáveis para nossos familiares e amigos.” Diz ele ainda: “acredito que passamos as primeiras décadas da vida enchendo esse saco, depois, passamos o restante tentando tirar tudo que escondemos”.

Mas será que, como adultos, retiramos tudo que escondíamos dentro do velho baú? Ou na tentativa de se ver livre desses resíduos, os jogamos inconscientemente no saco do outro?

Os arqueólogos, escavadores da psique dizem que o preconceito está a serviço do Eu narcísico: Tudo funciona como a imagem do outro (o diferente), estivesse sempre ameaçando o espaço de Narciso.

Uma genial estrofe de SAMPA, de Caetano Veloso, diz muito sobre a nossa eterna procura por um Eu ideal. O verso poético desse grande compositor da MPB parece trazer à superfície fragmentos que estavam enterrados firmemente no subsolo mental. É escavacando minuciosamente esses restos radiculares que iremos, com certeza, encontrar resquícios da seiva do preconceito de achar que é feio tudo aquilo que não é nosso espelho:

“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E a mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes”.

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